Carta para Chico, o Buarque de Holanda

Por Adriana Bernardes



Brasília, 20 de maio de 2020. 


Meu caro Chico, 


espero que estas palavras te encontrem com a serenidade necessária para enfrentar tempos tão tristes e incertos. Aqui, vou vivendo um dia de cada vez. Rio, choro, canto, danço, perco a esperança para recuperá-la logo ali... distante alguns minutos ou mesmo dias. 


Tomo a liberdade de enviar esta carta para te contar sobre o que muitos vão chamar de desvario. Não me importo. Vez ou outra, quando o coração está prestes a explodir dentro do peito, derramo angústias,  desejos, sonhos e um bocado de ficção na tela pálida do computador. Claro, na adolescência as palavras desfilavam coloridas nas páginas de um caderno cuidadosamente decorado com corações, flores, noites enluaradas e céu salpicado de estrela. 


Confesso agora que, entre meus escritos, tem um que deveria ser cantado por ti. Sim, é isso mesmo que você leu, Chico! Numa dessas viagens para deixar a alma mais leve, escrevi um texto que era sua cara. E antes que você pense que sou mais uma fã cega da tua obra, devo alertá-lo que não é o caso. 


Minha história contigo começou no fim dos anos 1980, quando descobri sobre os horrores da ditadura guiada pela professora de História de quem, lamentavelmente, não me lembro o nome. Fiquei estarrecida com os artigos, revistas e recortes de jornal que ela levava para nos ensinar o que não se lia nos livros oficiais de História do Brasil distribuídos nas escolas.


Um dia, ela levou um gravador, tirou da bolsa uma fita cassete e escutamos Cálice, cantada por você.  Cálice e Para não dizer que não falei de flores, do Vandré, foram um divisor de águas naqueles anos em que o país se agarrava a um fiapo de democracia ainda groge de tanto sopapo e pau-de-arara.


O tempo passou e agora preciso fazer um parêntese. Já na faculdade de comunicação, conheci um moço lindo: quase dois metros de altura, debochado, cabelos raspados na máquina zero e com os olhos mais serenos que já vi. Claro que nem tudo é perfeito, né, Chico! 


O moço lindo não fazia a barra do jeans, então, pisava sobre elas deixando-as sujas e rasgadas. As camisetas tinham furos de tamanhos variados. Era fumante (odeio cigarro, Chico) e tinha vocação para a boemia, estilo de vida que, eu, definitivamente, não me encaixava. Mas , desde o primeiro beijo, nunca mais nos separamos, e lá se vão quase 24 anos. 


A mãe do moço é tua fã desde a adolescência. E, foi por meio dela, que conheci mais sobre tua obra. Do alto da minha presunção juvenil, decretei diante dela: "Gosto das letras, mas não gosto da voz". Sustentei por alguns anos essa argumentação. E era verdadeira, admito. E aqui fecho o parêntese para voltar ao meu devaneio. 


Compreendi, com o passar dos anos, que dificilmente as tuas letras teriam o mesmo peso em outra voz. Por um tempo, senti vergonha do "gosto da letra, mas não gosto da voz".  Anos depois, li entrevistas suas falando sobre o seu cantar e isso reduziu um tantinho o meu desconforto pela frase proferida ao longo dos meus 20 e poucos anos. 


E, sim, Chico, insisto que tenho um conjunto de palavras que ficariam perfeitas na sua voz. É sobre amor. Mas não um amor qualquer. É sobre encontro de almas; sobre paixão, sobre frio, tormenta, e porto seguro. Certeza que, pelo dedilhar do teu violão e com essa tua voz miúda/gigante, meu poema seria jogado ao vento, tal qual as pétalas do "bem me quer mal me quer". Seu timbre imprimiria neles outro significado. 


Então, Chico, se você chegou até aqui, talvez queria, um dia, que te envie meu poema. E, talvez um dia, eu esteja diante de ti, na coxia, inebriada pelo teu cantar. 

Comentários

  1. Agora fiquei doido pra ouvir essa parceria!

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    1. Ah, professor Paulo César, quem dera eu tivesse a altura! Ainda bem que ainda podemos sonhar!

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  2. Que pandemia é essa!!!!!
    Deus nos proteja!
    muitas lições sendo aprendidas, muitas das vezes, a força da situação.

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    1. Sim, Marcelo! Que possamos tirar todas as lições possíveis neste momento tão difícil. Fique bem!

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  3. Cadê o poema, Adriana? Quero conhecer. Não sou o Chico, mas também componho. Se quiser, dou minhas brincadas sobre suas palavras. rsrsrsrsrsrs

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    1. Oi, Nanine! É que este poema aí, da carta, só na voz do Chico. E o fato de eu ter tido coragem para contar pra ele se deve a essa pandemia mundial de coronavírus. Estou perdendo o juízo! Mas ó, tenho outros aqui. Bora fazer uma parceria. Abraços!

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